quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

As guardiãs do passado

E parece que nunca saí da terrinha. Ainda que algumas coisas tenham mudado (os ônibus circulam no sentido oposto na Benfica e o Bompreço está estimulando o uso de sacolas retornáveis), Ieda Alves continua dizendo que "está indo nessa" na Nova Brasil FM e todo o país está comentando a novela das oito.
Aproveito uma parada em casa para reencontrar minhas coisas encaixotadas em um armário. Minhas coisas, minha história, minhas memórias. Carteiras de estudante desde 1995, com minha carinha mudando ao longo dos anos. Meus antigos diários - e que divertido é mergulhar nas curtições e preocupações de minha adolescência. Metade do que eu escrevia era sobre futebol, vôlei e Fórmula 1. Explicações detalhadas sobre Copas do Mundo e Olimpíadas, considerações variadas e declarações de amor a vários atletas, e muitos lamentos e perturbação com a morte de Senna. Em paralelo, minhas opiniões políticas e a decepção com o povo brasileiro quando este preferiu FHC a Lula. E finalmente, mas não menos importante, os garotos. Os mais bonitos do colégio, quem cortou o cabelo e ficou um gato, aquele cuja namorada é uma chata (claro), os sonhos impossíveis... os amores platônicos que encontravam um refúgio nas páginas de meus diários ainda escritos em francês, em uma época em que minha desenvoltura na língua ainda o permitia. Diários que eram meus amigos, companheiros que ganhavam até nomes, como aquele que eu chamava de Luanda, como a capital de Angola, sabe-se lá por quê.
Passada a época dos diários, as agendas entraram na moda. De tantos papéis e colagens, ao fim do ano elas mal fechavam. E depois, quando a vida nos torna sérios demais para tais bobagens, dizemos que não temos mais tempo e abafamos nossos sentimentos dentro de nós mesmos.
E aí vem a época em que os amores platônicos são substituídos por amores mais concretos. E então vêm as fotografias, cartões, cartinhas de amor que ainda não nos parecem ridículas, mas que fazem rolar discretas lágrimas de desilusão. Pelo que não foi, pelas promessas impossíveis e de fato não cumpridas. Mas por outro lado, um certo acalanto nos invade o coração, por ele um dia ter batido forte por tudo aquilo, que foi belo e sincero. Pedaços de vida que precisam então voltar para as caixas, bem tampadas, devolvidas ao rol das memórias. Junto às flautas, os bichinhos de pelúcia, as pedrinhas, os cadernos e os cartões postais.
Minhas queridas coisinhas, inúteis talvez, mas que fazem parte de quem eu sou. Não há como escapar da nostalgia que transborda das caixas guardiãs do passado.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

The girls night out

Sábado à noite, saímos do hotel para as ruas desertas e geladas de Zweibrucken, na Alemanha. Achamos o restaurante pelo apetitoso cheiro e abrimos timidamente a porta para encontrar um aconchegante recinto (bem quentinho!!) e atrair todos os olhares. Eram todos alemães, de 40 para cima, homens em sua maioria. Alguns estavam sentados ao balcão do bar jogando conversa fora. Ninguém era fluente em inglês, embora vários arriscassem algumas frases. E nós éramos quatro jovens mulheres, duas loiras e duas morenas, e certamente não originárias de Zweibrucken.
Abrir o cardápio foi frustrante - nada fazia sentido. Porém, em dois minutos já havia umas seis pessoas ao nosso redor, tentando traduzir o menu. Nisso aproxima-se um rapaz e deposita rapidamente em nossa mesa quatro bonecos de Papai Noel de chocolate, sem dizer uma palavra e sem esperar pelos nossos quatro enormes sorrisos e obrigadas.
Pedido feito, eis que um dos nossos tradutores, um senhor de 65 anos que já tinha tomado algumas, sem cerimônia puxa uma cadeira e senta-se conosco, iniciando uma conversa que foi quase um monólogo. Meio surdo e com um inglês precário, ele não nos compreendia, mas falou a noite toda, claramente animadíssimo com nossa presença. Ao nosso redor, seus colegas lançavam olhares curiosos, riam e traziam-lhe mais bebida, enquanto a dona do restaurante vez ou outra tentava tirá-lo de nossa mesa. Um ou outro senhor aproximava-se ocasionalmente para fazer perguntas do tipo "qual a distância de Londres para Manchester" (!!!).
Terminada a refeição, a simpática senhora que não falava uma palavra de inglês veio nos oferecer algum digestivo, tipo um licor. Diante de minha recusa, lançou-me um olhar de mais profundo estranhamento e tentou convencer-me a tomar, pelo menos, um café. A essa altura, eu já estava tendo alucinações, sonhando com uma simples garrafa d'água sem gás, coisa que não existe na Alemanha (isso acontecera comigo uns 20 anos atrás, mas eu achava que o país tivesse evoluído!!). Fiz toda espécie de mímica para a senhorinha compreender que eu queria algo sem bolhinhas, e ela me trouxe uma nova garrafa d'água, com menos gás que a primeira. Desisto. O café com Bailey's das meninas foi cortesia de um tal de Peter, que devia ser o dono o restaurante e estava rondando por lá também.
Por volta das 11 da noite, o restaurante foi invadido por uma multidão de senhores e senhoras vindos sabe Deus de onde. Resolvemos que era hora de ceder a mesa e bater em retirada. Para nossa surpresa, nosso pegajoso amigo vestiu o casaco e saiu conosco, disposto a acompanhar-nos ao hotel. Negamos veementemente e escapamos, refugiando-nos no quarto do hotel para prolongar as boas risadas de uma fantástica "girls' night out".

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

I am not the only one

Marjane Sartapi salpicou brilhantemente em quadrinhos a história de sua vida, em "Persepolis". Deliciosa leitura que terminei ontem, já morrendo de saudades. Não tem mais um pouquinho?? Foi como perder uma amiga. Qual não foi, portanto, o brilho que invadiu meus olhos quando ouvi, boquiaberta, a história de uma Marjane 10 anos mais nova, com nome de estrela. Tara é uma iraniana de 23 anos que frequentou em Teerã a mesma universidade que Marjane, no mesmíssimo curso de Artes Plásticas. Como Marji, Tara teve como modelos mulheres totalmente cobertas nas suas aulas de desenho, situação que, como tantas outras passadas sob "o regime", ela chama de "hilárias". Como Marji, Tara viveu a guerra. Ao virar uma mocinha, passou a ser obrigada a cobrir-se toda para sair à rua. No decorrer de sua adolescência, Tara "pirou". Raspou os cabelos bem curtos e passou a ser um menino, integrando gangues de rua. Uma "aventura", segundo ela. Pois ser menina era um fardo pesado demais.
Aos 19 anos, Tara mudou-se para o Cambodja. Lá, ensina crianças a arte da fotografia, enquanto exerce-a também ela mesma. Viver no Cambodja em meio a crianças famintas, mutiladas, vagando por lixões, implorando por comida, fez de Tara outra pessoa. Uma menina que sabe a que ponto a miséria pode chegar, mas que, talvez por isso mesmo, não deixa de se deleitar com cada pequena alegria da vida. Tara sorri como a criança que é. Tara sorri para que suas crianças sorriam com ela.
Muitos de meus conterrâneos estranham e quase repreendem meu desejo de voltar ao Brasil no futuro. Porque aqui, EU posso ter uma vida MUITO melhor. EU posso ganhar MUITO MAIS dinheiro. EU posso estar a salvo da violência que assola meu país. E daí? Eu, eu, eu... A vida já me deu tantas coisas boas, que o que mais quero fazer é partilhá-las.
Quando pessoas como Tara cruzam meu caminho, meu coração se enche da mais profunda admiração e de uma esperança que nos dias de hoje é tão facilmente perdida de vista.
Tara quer dizer estrela.
"You may say I'm a dreamer, but I'm not the only one."

Foto: Tara.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Elas e seus amores, ou Esse é para casar

Instituto de Educação, mais uma manhã chuvosa de segunda-feira. Após uma aula sobre ética na pesquisa almoçamos juntas, as quatro.
M., chilena, 32 incompletos com jeito de 26, casou-se poucos meses antes de vir para Londres. Precisou de muita terapia para traçar o perfil do homem perfeito para casar (com ela). Não, não era aquela grande paixão dos seus 20 anos, aquele rapaz deprê sempre a carregar um olhar encantadoramente melancólico. Tampouco era aquele gatérrimo que vivia a escalar montanhas. M. e D. conversaram muito e decidiram, racionalmente, que haviam nascido um para o outro. Firmaram contrato. Nada de sentimentos avassaladores que embaralham a cabeça - quem pode casar assim?
I. faz coro. Aquele que partiu seu coração era um cara atlético, mas que cultuava o físico ao extremo. I. é mexicana, tem 29 anos, casada há 3 com um cara que tem lá sua barriguinha, mas foi O cara para casar. Naturalmente não se espera que ele vá partir-lhe o coração.
Curiosamente, é a japonesa K., nos seus 32, que vem questionar a frieza dessas latinas. Pois casamento para K. decide-se à flor da pele, como quando ela disse sim ao pedido do seu melhor amigo, pelo Skype, de Tóquio para Londres. Casam-se mês que vem e continuarão à distância enquanto a vida assim o quiser.
Desde que, mal ou bem, entrei nesta nova fase da minha vida, uma das coisas que mais me confortam é ouvir as histórias dos outros.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Brasileiros de minha Londres

É domingo, pego o ônibus 15 para ir à National Gallery. Disseram-me que os girassóis de Van Gogh estão por lá. Não sou lá uma pessoa com uma veia artística muito apurada, mas não custa nada (e não custa mesmo, é de graça :P) ir dar uma olhadela em uns Van Gogh, Monet, Renoir, esse pessoal fraquinho.

Esse ônibus aí para no mesmo lugar onde nós peguemo (sic) esse.

No primeiro andar do famoso ônibus vermelho, três brasileiros brindam todos os passageiros (especialmente os que estão entendendo) com uma interessante e sofisticada conversa, caprichando nos "R" mineiros ou paulistas, whatever.

Tá vendo aquela gordinha ali? Se dá um vento, levanta o vestido, mostra a bunda, ela nem liga.

Ao lado dos girassóis de Van Gogh, estava o meu preferido Campo de Trigo com Ciprestes:


Com toda a minha falta de talento para as artes plásticas, tive que copiar este quadro como ilustração no meu caderno de poesias da escola na França.

Cê tá pegando muitas?
Eu, pegando?? Eu não tou pegando é nada!

Ciprestes... como era mesmo aquela poesia de que eu gostava, que falava de ciprestes?

"Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo..." Fernando Pessoa

(salve o Google)

Ontem tomei umas e fiquei malucão, meu.

(Uma cópia de) Campo de Trigo com Ciprestes está agora na parede do meu quarto.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

O punk, o homem nu e outros causos londrinos

East India Dock Road, parada do ônibus. Ele obviamente tinha dentes demais na boca. Uma longa capa preta pendurada em um dos ombros deixava aparecer um tubo metálico, com algumas rodelas de espuma igualmente espaçadas, preso às costas do dono. Botas pretas, calça justa preta, camiseta preta. Ao seu lado, uma velhinha simpática tentava ajudá-lo. Falavam de caminhos, reconheci nomes de ruas. A velhinha tratava-o como a um filho. Ao subir em seu ônibus, desejou: "God bless you, darling!". "Darling", pensei, eu chamaria esse punk de tudo menos "darling". Só, ele aproximou-se de mim. Puxou conversa. Falava enquanto eu balançava a cabeça sorrindo amarelo - que sotaque miserável (ou seria culpa dos dentes?) - eu entendia uns 20% de tudo que ele dizia. Mostrou-me os braços com marcas - algo definitivamente tinha-lhe acontecido "da última vez". Meu maravilhoso mundo de Bob logo imaginou que ele tinha apanhado da polícia em praça pública devido a alguma performance artística com o tubo metálico. Mas agora, disse ele, "cortei o cabelo, comprei umas roupas novas" (bela capa!), então, "fingers crossed", terei mais sorte. God bless you, darling.

***

Show da mexicana Julieta Venegas. Na fila na calçada, mexicanos, mexicanas, namorado(a)s de mexicano(a)s em todas as possíveis combinações, e eu. De repente, surge ele do nada, correndo e gritando, vestindo apenas uma mini-blusa cor de rosa transparente e justíssima. Eu disse APENAS isso. Corre rua acima... corre rua abaixo... e desaparece beco adentro. Provavelmente, uma despedida de solteiro. Oh, dear.

***

Comprei um panini e a moça colocou um pacote de batatas chips junto. Não gosto de batatas chips. Ao terminar meu sanduíche no banco de uma ensolarada Leicester Square, resolvi que não levaria as batatas comigo. Olhei para o cara do meu lado, que também lanchava. Vou oferecer as batatas. Ele vai achar que eu sou louca. Ele vai pensar que o estou tratando como mendigo. Ele vai pensar que as batatas estão envenenadas. Ele vai pensar que tem uma bomba no pacote de batatas!! Eu não vou levar essas batatas. "Excuse me", você gosta dessas batatas? Ela é louca, ele pensou. "É que eu comprei um sanduíche e elas vieram junto, mas não gosto...". Ele pegou as batatas resmungando algo incompreensível. Afastei-me rapidamente com um leve sorriso nos lábios. Que bom que me livrei das batatas.

***

Do outro lado da rua, ela soluçava. O sinal de pedestre abriu e ela não se moveu. Cheguei ao lado dela ao mesmo tempo que uma outra moça. Paramos, uma de cada lado, e a moça perguntou-lhe o que se passava. "Eu estou muito assustada, muito assustada". A moça ofereceu-lhe o braço para atravessar a rua. Acenei com a cabeça e segui meu caminho. Coincidência ou não, a moça também não era inglesa. A mulher assustada era.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Ensinar é a coisa mais bonita que tem!

Muito me honra aqui postar um texto de meu pai que, não tendo tempo no momento para criar seu próprio blog, mas com inveja do meu :P, resolveu contribuir. Pô, pai, se eu soubesse que ias escrever comigo, poderia ter posto outro título no blog ;)
Enfim, para mim o texto está emocionante. Por Jorge Falcão, "Palavras, livros e leitores":

"Ao saber que meu destino era o campus universitário da UFPE, o motorista de taxi que me conduzia a partir do aeroporto dos Guararapes, em Recife, perguntou logo na manobra se eu era professor. Diante da resposta positiva, ficou em silêncio uns segundos, como quem toma coragem, e:
- O senhor pode me dizer o que significa a palavra “arauto”?
Virei consultor de palavras-cruzadas de taxista, pensei meio azedamente. Mas em seguida pensei também que essa devia ser uma função social minha, afinal sou servidor público, e:
- Arauto é uma espécie de mensageiro, alguém que leva e traz novidades.
- Ah!
(Silêncio)
- Tinha uma outra palavra que eu queria perguntar, mas não lembro não.
(Silêncio)
- O-RÁ-CU-LO! O senhor sabe o que é isso?
(Quantas palavras durará essa jornada ao longo da Avenida Recife?)
- Oráculo é, assim, alguém que desvenda sinais, alguém que vê indícios de acontecimentos que a maioria das pessoa não vê.
- Oráculo é isso?
- Se não me falha a memória, sim, mais ou menos isso...
- O senhor sabe se “arauto” vem do grego?
(!!!!)
- Eu não faço idéia, mas não parece grego... melhor consultar um dicionário...
(ao chegar em minha sala fui verificar, e constatei que efetivamente “arauto” vem do francês arcaico ou frâncico, hérault...)
- E qual é um dicionário bom?
- Todo mundo fala do Aurélio, não é? Tem o grandão e o pequeno, que é usado pelas crianças. Recomendo comprar o grandão.
(Silêncio)
- Eu estudei muito pouco na minha vida, mas agora voltei a ler. Quero ler dois livros por dia.
(!!!)
- Mas eu empanco nas palavras. Tem muitas palavras! Eu peço ajuda dos colegas mas é tudo mais “inguinorante”do que eu. Outro dia um deles quase dá em mim, porque eu disse que ele era um “indivíduo”. Ele ficou foi brabo! Agora me diga, qual o problema d’eu chamar ele de indivíduo? “Indivíduo” é aquele que não se divide, é aquele que é uma pessoa, certo?
- Certo...
- Então qual o problema? Ele gritava comigo que eu não chamasse ele de indivíduo, bicho mais inguinorante!
- Às vezes as palavras mudam de sentido, dependendo da situação...
- É?!!!
- Dizer que alguém é um monstro não é propriamente um elogio, mas se eu digo que João Paulo é um “monstro da política”, monstro aí tem outro sentido, não é?
- É...
(Silêncio)
- Eu queria aprender inglês. Tem uns colegas da cooperativa que estão aprendendo, pra atender os americanos. Mas eu não consigo entender nada da “voz”dos americanos! Outro dia um pegou meu taxi e pediu pra ir prum lugar que eu entendi “shopping center Recife”, e levei ele; mas ele queria ir pro “centro do Recife”. Quando eu deixei ele no shopping, ele ficou brabo, gritava, dizia “centro do Recife”, “centro do Recife”, tudo engrolado, mas era escritinho “shopping center Recife”!
- O senhor tenta aprender somente umas poucas frases, e aí vai treinando; quando aprender umas, parte pra outras, ou então fica no feijão-com-arroz mesmo.
- Eu acho que eu não aprendo mais não. É muito difícil! Eu queria aprender muita coisa, mas não cabe em minha cabeça. Queria ler dois livros por dia, mas não dá, tem palavras demais... E agora o senhor disse que ainda mais as palavras mudam...
(Pronto, eu já estava completamente engajado na conversa; poderíamos ter ido até Natal conversando, mas havíamos chegado ao campus da UFPE).
- Quem aprende, gasta tempo aprendendo, não desanime! Aprenda uma coisa todo dia, e o senhor vai ver como irá longe!
- O senhor se incomoda de escrever aqui nesse papelzinho o que o senhor disse de “arauto” e “oráculo”?
- Não, de jeito nenhum, me dê...
(...)
- Muito obrigado, o senhor ensina aqui?
- Já ensinei aqui durante muitos anos, agora ensino na universidade de Natal.
- Ensinar é a coisa mais bonita que tem!
- Obrigado!
- Eu é quem agradeço ao senhor!
- Coragem e progresso em suas leituras!
- Obrigado!
A narrativa acima é verídica, nos limites da dinâmica do conto e do reconto. Infelizmente não fiquei sabendo do nome desse taxista, nem disse a ele o meu. Em meio ao trânsito caótico, em meio à violência de Recife, descubro um taxista em busca de luzes; um taxista-leitor, empenhado de verdade em aprender, consciente do quão árdua é essa empreitada, mas comprometido pra valer com ela. Dedico a ele esse texto, na esperança de que, quem sabe, um dia ele o leia! E a ele, na sua condição pirandelliana de personagem em busca de um autor, agradeço por se deixar capturar para meu texto."

terça-feira, 7 de outubro de 2008

We have to kill him

Em um recente debate entre os presidenciáveis norte-americanos, Barack Obama proferiu a seguinte pérola, referindo-se a Osama Bin Laden: "we have to find him and kill him!". Ninguém me contou, EU ouvi.
A declaração não pareceu nada alarmante, pareceu mais uma promessa qualquer de campanha. Eu prometo mais empregos, melhorar o sistema de saúde e matar Bin Laden. É tão simples assim?? Vocês imaginam Lula, Alckmin, ou até mesmo, sei lá, Severino Cavalcanti, dizendo: "Temos que encontrar Fernandinho Beira Mar e matá-lo"?? No mínimo, isso geraria uma semana de rebuliço no país. Imaginem, entre as manchetes do Jornal Nacional, Fátima Bernardes anunciando: "A seguir: Lula promete matar Fernandinho Beira Mar". Pode até ser que boa parte da população brasileira aprovasse a medida, e adorasse ver Beira Mar nas mãos do Capitão Nascimento. Mas venhamos e convenhamos, nossas razões são bem outras, nascidas de um sentimento de revolta ao vermos tantos revólveres apontados para cabeças inocentes por conta de celulares e alguns reais - e isso é tema para outro post. Mas e eles lá de cima, que razões têm?
No documentário "Por que lutamos", a grande maioria dos norte-americanos entrevistados na rua respondeu: "lutamos por liberdade". Liberdade de quem, cara-pálida? Isso parece cantilena de colégio, memorizada sem compreensão. Quando eu era 7a série, nossa professora de Ciências nos fez decorar que "enzima é uma substância capaz de acelerar uma reação" e eu não fazia a menor idéia do que isso queria dizer. Nas escolas norte-americanas, eles devem fazer as crianças repetirem "lutamos por liberdade". Às vezes me pergunto se já não está em andamento a edição de notícias passadas para fazer a sociedade acreditar em fatos que não ocorreram, como George Orwell descreveu em "1984" - a verdade é aquilo em que todo mundo acredita.
É uma questão de valores. Digam o que quiserem, mas pra mim há algo de intrinsicamente errado com os princípios dessa gente do Tio Sam.
E assim, os Estados Unidos libertaram o Iraque de Saddam Hussein. No buraco, encontraram apenas o ditador, que escondeu tão bem suas armas de destruição em massa que nem ele mesmo as encontrou mais - do contrário não estaria morto agora.
Pois é, senhoras e senhores, continua a missão estadunidense para salvar o mundo. Clap, clap, clap, parabéns, Obama. Do outro lado do planeta, dentro de algum buraco, Osama deve estar discursando para seus homens-bomba: "temos que entrar lá e explodirmo-nos". Vai ver que, eles também, lutam por liberdade.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Por que você não olha para mim?

Cada vez que saio de Londres, confirmo uma impressão que não é só minha. Em Londres, somos invisíveis. E os sujeitos do meu "somos" não são os brasileiros, as mulheres, seres de pele cor de jambo ou qualquer outra "minoria étnica", como eles "respeitosamente" chamam esses grupelhos mais passíveis de discriminação. Quando digo "somos", incluo até mesmo os "brancos britânicos" (nossa, existe algo superior a isso??).

Em Londres, vista você meias-calça pink, cubra-se você de tatuagens e piercings, ou aposte no jeans e camiseta básicos, dá na mesma - ninguém vai olhar mais ou menos para você por causa disso. Esteja você gargalhando ou debulhando-se em lágrimas, o carinha do "London paper" vai continuar atravessando o braço na sua frente sacudindo mais um exemplar grátis do tablóide inglês. Resumindo, de nada adianta pôr uma melancia na cabeça, esqueça, você NÃO VAI chamar atenção.

Isso tem seu lado bom. Desde que você esteja dentro das regras, não pare no lado esquerdo da escada rolante e não deixe nenhuma bolsa ao léu, você pode fazer / vestir / ir / se comportar como bem entender sem que ninguém aponte-lhe o dedo ou fofoque com o vizinho. Há poucas coisas comparáveis à maravilhosa solidão de se entrar nas zilhões de lojas da Oxford Street sem trocar uma mísera palavra com qualquer vendedor(a), quanto mais entrar naquelas conversas insuportáveis e falsas que começam com algo do tipo: "como é teu nome, lindona?". Ir ao parque quando está sol, ler um livro, esparramar-se na grama, ouvir música e voltar pra casa sem dar satisfação nenhuma ao mundo. Perder-se na multidão.

Por outro lado, ainda me revolto quando esbarro em alguém ou vice-versa, e, ao me virar para pedir desculpas ou recebê-las, não consigo sequer identificar a pessoa envolvida, que já sumiu na sua pressa que a impede de perder 2 segundos da sua jornada para um - não peço simpático, mas ao menos cordial - sorry. Em Londres, todos os pais estão na forca. Estações de metrô são um capítulo à parte, verdadeiros campos de batalha. E não adianta você colocar seu vestidinho verão ou sua charmosa boina de outono - até mesmo Gisele Bundchen passaria despercebida.

Nunca recebi tantas cantadas e olhares na rua quanto neste fim de semana que passei em Portugal. Tudo bem que meu físico de minoria étnica deve ter contribuído; em Londres há tantas etnias que nada é diferente, ou tudo é. As de burca sentam-se ao lado das de minissaia no metrô. Mesmo assim, nada mau para a auto-estima feminina ouvir uns elogios por aí. "Muito linda!", "Jesus!!!", "Que bela saia!". É, vai ver que, afinal de contas, eu não sou tão mau assim. Pelos menos para aqueles que me vêem. E salve a pátria lusitana! Ora, pois pois.

domingo, 14 de setembro de 2008

Com quantos vetores se navega uma jangada?

Já leu esse livro? Ah, tem que ler, é muito bom.
Já viu esse filme? Ah, tem que ver, é muito bom.

Quantos blogs você visita por dia? De quantas listas de discussão você participa?
Em quantas destas discussões você dá sua opinião? Sobre quantos assuntos você tem uma opinião?

João da Costa ou Mendoncinha? Barack Obama ou John McCain?

A quantas exposições de arte você foi mês passado? Você já viu esse programa da TV?
Conhece os sucessos do momento da música americana?
Como assim você não sabe quem é Rihanna? Já ouviu falar de Janis Joplin? Céu? Baba Cósmica? Balão Mágico? Jackson Five? Silvério Pessoa? Bicho de Pé?

Não me diga que você não sabe quem foi Anne Frank. Joana d’Arc? Ana Bolena?

Quantos habitantes tem Recife? E Londres? E Pequim? E Jacaré dos Homens?

Você já visitou um país cujo nome comece com D?

Entre na dança de salão. No coral. Na ioga. Alongue. Caminhe. Corra. Relaxe.

Mas não esqueça do prazo de submissão das conferências. Não esqueça de fazer as compras. Não esqueça que acabou o açúcar. Não esqueça de tirar a carne do congelador de manhã.

Carrregue o celular, a bateria da máquina fotográfica, o ipod, o laptop, o depilador.

Leia os jornais. Leia os artigos científicos. Leia os tablóides distribuídos no metrô.

Com quantos LEDs infravermelhos se faz uma mesa interativa? Com quantos reais se compra um carro usado?

Esteja preparado para falar em público, apresentando um seminário ou contando uma história numa mesa de bar.

Quantos países você já visitou? Quantas línguas você fala? Quantos programas sabe usar? Windows, MacOS ou Linux? Está no orkut? No Facebook? MSN? Second Life?

Lê quadrinhos? Vá mais ao cinema, ao teatro, aos museus.

Passe hidratante. Passe o aspirador no quarto. Não esqueça do protetor labial. Do casaco. Do cachecol. Das luvas. Da sombrinha. Lave o banheiro. Coma frutas. Mantenha-se bonito, jovem e saudável.

Conhece esse vinho? Sabe dirigir? Onde serão as próximas Olimpíadas? Sabe jogar Guitar Hero? Qual o atual time da seleção masculina de futebol do Brasil? Quem é o treinador do Chelsea? Com quantos vetores se navega uma jangada?

Tenha filhos. Apare as pontas do cabelo. Faça as unhas. Lixe a sola do pé. Compre lentes de contato.

Quantos links você visitou hoje? Quantas músicas baixou?

Não esqueça de fazer backup. Atualizar a homepage. Atualizar o vocabulário e passar a chamar homepage de site.

Veja o guia eleitoral. O jogo de futebol. O novo Batman. Leia o novo Saramago e o velho Dostoiévski.

Como se escreve Nietschze? Você sabe o que é niilismo? Você sabe cozinhar? Você sabe tocar algum instrumento musical?

Ligue para seus amigos. Dê atenção aos seus avós. Não esqueça de respirar. E relaxe lendo “As 101 coisas que você precisa fazer antes de morrer”.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

A memória é uma ilha de edição

Esta frase não é minha. Ouvi de um amigo, que por sua vez confessou ter ouvido em algum programa de rádio ou TV, não lembro, não importa.

Eu lembro de propósito. Eu gosto de lembrar.

Emilie não falava. Não sei por quê, mas ela não falava. Era, portanto, a melhor ouvinte para meu francês iniciante. Eu fingia que telefonava para o Brasil, o polegar na orelha e o mindinho em frente à boca. Falava mil besteiras, dignas de meus sete anos de idade. Emilie ria. Não de mim, como as crianças que caçoavam do meu francês. Emilie ria comigo. A memória é uma ilha de edição. Corta. 20 anos depois - Emilie me adiciona à sua lista de amigos em um site de relacionamentos.

Meus irmãos quebravam nossos brinquedos. Todos eles. Tentando pôr alguma ordem na casa, mamãe os entulhava em caixas plásticas coloridas que ela provavelmente comprara na IKEA a preço de banana. Eu brincava com os pedaços dos brinquedos. Viravam barcos. Por causa das enchentes. Não tenho nenhuma história real com enchentes. Devo ter visto alguma coisa na TV. A caçamba do que tinha sido uma carruagem Playmobil era um ótimo barco. Aí, todo mundo tinha que se ajudar. Era preciso que todos fossem alocados nos barcos antes da enchente. Era fundamental um cuidado especial com as crianças. Ajudem as crianças. Monstrinhos de borracha, animais, a Tila do He-man, os bonequinhos de Playmobil sem mãos, a vovó do Caça-Fantasmas… uma vez todos embarcados, acabava a brincadeira. Não havia nenhum barco propriamente dito. Eu acho. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Bom mesmo, era na casa de Laetitia. Um pequeno paraíso, o quarto de uma princesa. Tardes de alegria e torradas com Nutella, espalhada com colher. A memória é uma ilha de edição. Corta. Anos depois. Os pais de Laetitia soluçam à minha frente. O castelo não tinha mais princesa.

Bom mesmo, era no Firenze, em Boa Viagem. Se a gente colocasse a cabeça um pouco para fora da janela, dava pra ver o mar. As janelas eram grandes. Eu gostava de deitar ao sol depois do almoço. Armava minha barraca da Mônica e do Cebolinha junto às janelas. Deitava-me ao sol para fazer a digestão. Em Boa Viagem fazia calor. O calor mais gostoso do mundo. Íamos a pé para a praia. Não havia tubarões, mas já havia cocôs boiando, para desespero de Mamãe. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Bom mesmo, era sentar-me à mesa do quarto de estudos e brincar com os lápis de cor. Formar as famílias: tons de azul, tons de vermelho. Os cotocos eram as crianças. Havia os órfãos, como o cotoco roxo, que precisava ser adotado. Adotem as crianças. Formadas as famílias, acabava a brincadeira. A graça era o componente melodramático. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Eu trouxe Benjamim no colo, no avião, e as aeromoças acharam meu elefante de pelúcia uma graça. Benjamim foi comprado no supermercado Continent com um dinheiro que Vovó Nilza me deu. Eu acho. Incontáveis as noites que Benjamim passou comigo. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Sébastien também veio. Uma pedrinha, à qual seguiram-se outras sessenta e nove. Todas com nome, sexo, e de uma determinada faixa etária. Algumas horrorosas, como Chiclete Mastigado. Era uma pedrinha branca encardida, como um chiclete que alguém tivesse atirado ao chão. Outras eram lindas, como Galet Mel Dourado, coletada na praia de Tibau do Sul. Havia Rato-Barata, Bela, Tainã, Banquinho, Telê, Bolinha, Cinzinha, Marquinhos, Sophie, Marc, Frágil, Branca, Misto. Eu fazia a chamada e lhes perguntava sobre os assuntos da escola. Sempre gostei de ser a professora. Toda sorte de histórias se desenrolavam no mundo das pedrinhas. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Bom mesmo era correr na praia de Rio Doce com Pingo na coleira. Subir na goiabeira. Ana só comia as cascas das goiabas. Vovó me dava o miolo. Balançar na rede cantando os jingles dos candidatos a prefeito. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Bom mesmo era ouvir meu avô cantar “que diferença da mulher o homem tem?” ou me perguntar quantas laranjas Zé tinha quando tiravam DE ZÉ NOVE. Bom mesmo era quando Vovó catucava minha cabeça com suas unhas enormes para tirar o alfinete e a pomba voltar a ser princesa. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Boa mesmo era a música do Pato Pateta que me deprimia, mas que eu fiz minha mãe cantar quatrocentas e vinte mil vezes. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Ruim era na França. No Natal, Mamãe nos vestia com as melhores roupas para irmos do quarto até a sala e ficarmos ali os cinco, apertados no nosso apertado apartamento, na sala que era o escritório de meu pai, junto à televisão, perto da rede que virava cavalo, Biel na frente, Pedro atrás, eu segurando as rédeas que eram minha corda de pular pink. Biel subia na mesa de papai. Biel melou as folhas impressas da tese com mãos de chocolate. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Papai fez um programinha para eu exercitar a tabuada de multiplicação. Rodava em DOS, tela preta, números verdes. Mamãe gostava de jogar Mario no meu Super Nintendo e levantava o controle para o boneco pular mais alto. A memória é uma ilha de edição. Corta. Anos depois. Mamãe deveria experimentar o Nintendo Wii.

Ruim mesmo era na França. Dormíamos os três no mesmo quarto. Biel tinha medo da vovó do Caça-Fantasmas porque ela abria a bocona e botava um linguão pra fora. Eu botava a vovó na porta do quarto para poder brincar sozinha. Se Papai soubesse, teria botado a vovó ao lado da impressora. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Ruim mesmo foi quando voltei pro Brasil. Era noite e vi crianças na rua. Fazia calor. O calor mais gostoso do mundo. Anos depois. Saio do cinema. Como uma pizza. Entro no carro. Saio do shopping. Entro na favela. Paro no sinal. Há crianças na rua. Subo o vidro. Acelero. Cuidado com as crianças. Agora há tubarões em Boa Viagem. E cocôs. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Escola Municipal Nossa Senhora do Pilar, Brum. Compartilho a merenda com os estivadores do porto. Seu Amaro, Seu Francisco, Seu Antônio. A louça é de plástico azul, gasto e riscado. A colher é áspera e causa repulsa na boca. Mas o munguzá está gostoso. A pequena Íris me sorri e estende a mão. Não subo o vidro. Retribuo o sorriso, acarinho a mão e compartilho o munguzá. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Ilha de Santo Aleixo. Um companheiro catador de seixos me diz que pedras são ótimos souvenirs e presentes. Ao contrário de flores, nunca murcham. Adorei. Passo a dar pedrinhas de presente. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Bom mesmo era brincar com meus primos na casa de meus avós. Pular de flor em flor na cerâmica do terraço. Passar horas na minúscula e fantástica piscininha de plástico azul com peixinhos. No sol. O sol mais gostoso do mundo. Pendurar-me de cabeça pra baixo nas árvores. Catar coração de negro na beira rio. Ir comprar pão no Cecosne. Andar sozinha pelo quintal inventando mil histórias. A memória é uma ilha de edição. Corta. Anos depois. A casa foi demolida. Estar sozinha me incomoda. Bom mesmo era me satisfazer comigo mesma no meu mundinho particular.

Bom mesmo era andar de bicicleta e a cavalo em Fazenda Nova. Subir a Pedra do Segredo e caçar as gias. Passear na pracinha à noite e apostar na roleta. Jogar buraco em casa. Dar um pulo no Brejo e visitar minhas tias-avós no Sobrado. Ir à feira no sábado de manhã. Bom mesmo é interior do Nordeste. Comer bode com moscas na beira da estrada. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Bom mesmo é ir à praia. Fazer bolas de areia, cuscuz de areia, castelos de areia, bolos de areias, ou levar uma cadeira para não se melar na areia. Colocar os óculos escuros e olhar para o mar. Quem vai andar hoje? Depois voltar para a casa alugada, tomar aquela ducha no chuveirão, almoçar qualquer coisa deliciosa, ler na rede e mais tarde, jogar buraco e ir à sorveteria. Quem quer ir à cidade comprar pão? A memória é uma ilha de edição. Corta.

Bom mesmo era levar meu walkman e fitas gravadas nas viagens de carro no Brasil. Bom mesmo era cantar musiquinhas francesas com mamãe nas viagens de carro na França. Bom mesmo era contar as bicicletas na estrada com Vovó Nilza. A memória é uma ilha de edição. Corta. Anos depois. Amo meu ipod azul.

Bom mesmo era almoçar com papai, em casa, provar uma colherinha de seu café e roubar metade de seu sonho de creme enquanto ele lia o jornal. Bom mesmo era brincar com a comida, forrar o prato de arroz e plantar couve-flor e champignons. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Bom mesmo era levar o miolo do pão do almoço da escola na França para a sala de aula e fazê-lo de massa de modelar. Eu gostava de fazer corações. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Ruim mesmo era ir a Paris ver as mesmas coisas sempre que tinha visita. A memória é uma ilha de edição. Corta. Anos depois. Bom mesmo é ir a Paris rever sempre as mesmas coisas, comer sanduíche grego no Quartier Latin e crepe de crème de marrom em Montmartre.

Ruim mesmo era ser obrigada a comer beterraba e cenoura empapada no vinagre no almoço da escola. Bom mesmo era quando o diretor colocava eu e Vanessa sentadas lado a lado no refeitório. Ruim mesmo era ver Madame Sciadous bater em Nathan. Bom mesmo era jogar bola de gude, pular elástico, corda, brincar de menina pega menino, e andar de patins nos parques. Ruim mesmo era quando o guarda reclamava com mamãe porque estávamos rolando na grama. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Ruim mesmo é enfrentar as primeiras vezes da vida. Bom mesmo é lembrar. Melhor ainda é editar.