terça-feira, 26 de agosto de 2008

A memória é uma ilha de edição

Esta frase não é minha. Ouvi de um amigo, que por sua vez confessou ter ouvido em algum programa de rádio ou TV, não lembro, não importa.

Eu lembro de propósito. Eu gosto de lembrar.

Emilie não falava. Não sei por quê, mas ela não falava. Era, portanto, a melhor ouvinte para meu francês iniciante. Eu fingia que telefonava para o Brasil, o polegar na orelha e o mindinho em frente à boca. Falava mil besteiras, dignas de meus sete anos de idade. Emilie ria. Não de mim, como as crianças que caçoavam do meu francês. Emilie ria comigo. A memória é uma ilha de edição. Corta. 20 anos depois - Emilie me adiciona à sua lista de amigos em um site de relacionamentos.

Meus irmãos quebravam nossos brinquedos. Todos eles. Tentando pôr alguma ordem na casa, mamãe os entulhava em caixas plásticas coloridas que ela provavelmente comprara na IKEA a preço de banana. Eu brincava com os pedaços dos brinquedos. Viravam barcos. Por causa das enchentes. Não tenho nenhuma história real com enchentes. Devo ter visto alguma coisa na TV. A caçamba do que tinha sido uma carruagem Playmobil era um ótimo barco. Aí, todo mundo tinha que se ajudar. Era preciso que todos fossem alocados nos barcos antes da enchente. Era fundamental um cuidado especial com as crianças. Ajudem as crianças. Monstrinhos de borracha, animais, a Tila do He-man, os bonequinhos de Playmobil sem mãos, a vovó do Caça-Fantasmas… uma vez todos embarcados, acabava a brincadeira. Não havia nenhum barco propriamente dito. Eu acho. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Bom mesmo, era na casa de Laetitia. Um pequeno paraíso, o quarto de uma princesa. Tardes de alegria e torradas com Nutella, espalhada com colher. A memória é uma ilha de edição. Corta. Anos depois. Os pais de Laetitia soluçam à minha frente. O castelo não tinha mais princesa.

Bom mesmo, era no Firenze, em Boa Viagem. Se a gente colocasse a cabeça um pouco para fora da janela, dava pra ver o mar. As janelas eram grandes. Eu gostava de deitar ao sol depois do almoço. Armava minha barraca da Mônica e do Cebolinha junto às janelas. Deitava-me ao sol para fazer a digestão. Em Boa Viagem fazia calor. O calor mais gostoso do mundo. Íamos a pé para a praia. Não havia tubarões, mas já havia cocôs boiando, para desespero de Mamãe. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Bom mesmo, era sentar-me à mesa do quarto de estudos e brincar com os lápis de cor. Formar as famílias: tons de azul, tons de vermelho. Os cotocos eram as crianças. Havia os órfãos, como o cotoco roxo, que precisava ser adotado. Adotem as crianças. Formadas as famílias, acabava a brincadeira. A graça era o componente melodramático. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Eu trouxe Benjamim no colo, no avião, e as aeromoças acharam meu elefante de pelúcia uma graça. Benjamim foi comprado no supermercado Continent com um dinheiro que Vovó Nilza me deu. Eu acho. Incontáveis as noites que Benjamim passou comigo. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Sébastien também veio. Uma pedrinha, à qual seguiram-se outras sessenta e nove. Todas com nome, sexo, e de uma determinada faixa etária. Algumas horrorosas, como Chiclete Mastigado. Era uma pedrinha branca encardida, como um chiclete que alguém tivesse atirado ao chão. Outras eram lindas, como Galet Mel Dourado, coletada na praia de Tibau do Sul. Havia Rato-Barata, Bela, Tainã, Banquinho, Telê, Bolinha, Cinzinha, Marquinhos, Sophie, Marc, Frágil, Branca, Misto. Eu fazia a chamada e lhes perguntava sobre os assuntos da escola. Sempre gostei de ser a professora. Toda sorte de histórias se desenrolavam no mundo das pedrinhas. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Bom mesmo era correr na praia de Rio Doce com Pingo na coleira. Subir na goiabeira. Ana só comia as cascas das goiabas. Vovó me dava o miolo. Balançar na rede cantando os jingles dos candidatos a prefeito. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Bom mesmo era ouvir meu avô cantar “que diferença da mulher o homem tem?” ou me perguntar quantas laranjas Zé tinha quando tiravam DE ZÉ NOVE. Bom mesmo era quando Vovó catucava minha cabeça com suas unhas enormes para tirar o alfinete e a pomba voltar a ser princesa. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Boa mesmo era a música do Pato Pateta que me deprimia, mas que eu fiz minha mãe cantar quatrocentas e vinte mil vezes. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Ruim era na França. No Natal, Mamãe nos vestia com as melhores roupas para irmos do quarto até a sala e ficarmos ali os cinco, apertados no nosso apertado apartamento, na sala que era o escritório de meu pai, junto à televisão, perto da rede que virava cavalo, Biel na frente, Pedro atrás, eu segurando as rédeas que eram minha corda de pular pink. Biel subia na mesa de papai. Biel melou as folhas impressas da tese com mãos de chocolate. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Papai fez um programinha para eu exercitar a tabuada de multiplicação. Rodava em DOS, tela preta, números verdes. Mamãe gostava de jogar Mario no meu Super Nintendo e levantava o controle para o boneco pular mais alto. A memória é uma ilha de edição. Corta. Anos depois. Mamãe deveria experimentar o Nintendo Wii.

Ruim mesmo era na França. Dormíamos os três no mesmo quarto. Biel tinha medo da vovó do Caça-Fantasmas porque ela abria a bocona e botava um linguão pra fora. Eu botava a vovó na porta do quarto para poder brincar sozinha. Se Papai soubesse, teria botado a vovó ao lado da impressora. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Ruim mesmo foi quando voltei pro Brasil. Era noite e vi crianças na rua. Fazia calor. O calor mais gostoso do mundo. Anos depois. Saio do cinema. Como uma pizza. Entro no carro. Saio do shopping. Entro na favela. Paro no sinal. Há crianças na rua. Subo o vidro. Acelero. Cuidado com as crianças. Agora há tubarões em Boa Viagem. E cocôs. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Escola Municipal Nossa Senhora do Pilar, Brum. Compartilho a merenda com os estivadores do porto. Seu Amaro, Seu Francisco, Seu Antônio. A louça é de plástico azul, gasto e riscado. A colher é áspera e causa repulsa na boca. Mas o munguzá está gostoso. A pequena Íris me sorri e estende a mão. Não subo o vidro. Retribuo o sorriso, acarinho a mão e compartilho o munguzá. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Ilha de Santo Aleixo. Um companheiro catador de seixos me diz que pedras são ótimos souvenirs e presentes. Ao contrário de flores, nunca murcham. Adorei. Passo a dar pedrinhas de presente. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Bom mesmo era brincar com meus primos na casa de meus avós. Pular de flor em flor na cerâmica do terraço. Passar horas na minúscula e fantástica piscininha de plástico azul com peixinhos. No sol. O sol mais gostoso do mundo. Pendurar-me de cabeça pra baixo nas árvores. Catar coração de negro na beira rio. Ir comprar pão no Cecosne. Andar sozinha pelo quintal inventando mil histórias. A memória é uma ilha de edição. Corta. Anos depois. A casa foi demolida. Estar sozinha me incomoda. Bom mesmo era me satisfazer comigo mesma no meu mundinho particular.

Bom mesmo era andar de bicicleta e a cavalo em Fazenda Nova. Subir a Pedra do Segredo e caçar as gias. Passear na pracinha à noite e apostar na roleta. Jogar buraco em casa. Dar um pulo no Brejo e visitar minhas tias-avós no Sobrado. Ir à feira no sábado de manhã. Bom mesmo é interior do Nordeste. Comer bode com moscas na beira da estrada. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Bom mesmo é ir à praia. Fazer bolas de areia, cuscuz de areia, castelos de areia, bolos de areias, ou levar uma cadeira para não se melar na areia. Colocar os óculos escuros e olhar para o mar. Quem vai andar hoje? Depois voltar para a casa alugada, tomar aquela ducha no chuveirão, almoçar qualquer coisa deliciosa, ler na rede e mais tarde, jogar buraco e ir à sorveteria. Quem quer ir à cidade comprar pão? A memória é uma ilha de edição. Corta.

Bom mesmo era levar meu walkman e fitas gravadas nas viagens de carro no Brasil. Bom mesmo era cantar musiquinhas francesas com mamãe nas viagens de carro na França. Bom mesmo era contar as bicicletas na estrada com Vovó Nilza. A memória é uma ilha de edição. Corta. Anos depois. Amo meu ipod azul.

Bom mesmo era almoçar com papai, em casa, provar uma colherinha de seu café e roubar metade de seu sonho de creme enquanto ele lia o jornal. Bom mesmo era brincar com a comida, forrar o prato de arroz e plantar couve-flor e champignons. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Bom mesmo era levar o miolo do pão do almoço da escola na França para a sala de aula e fazê-lo de massa de modelar. Eu gostava de fazer corações. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Ruim mesmo era ir a Paris ver as mesmas coisas sempre que tinha visita. A memória é uma ilha de edição. Corta. Anos depois. Bom mesmo é ir a Paris rever sempre as mesmas coisas, comer sanduíche grego no Quartier Latin e crepe de crème de marrom em Montmartre.

Ruim mesmo era ser obrigada a comer beterraba e cenoura empapada no vinagre no almoço da escola. Bom mesmo era quando o diretor colocava eu e Vanessa sentadas lado a lado no refeitório. Ruim mesmo era ver Madame Sciadous bater em Nathan. Bom mesmo era jogar bola de gude, pular elástico, corda, brincar de menina pega menino, e andar de patins nos parques. Ruim mesmo era quando o guarda reclamava com mamãe porque estávamos rolando na grama. A memória é uma ilha de edição. Corta.

Ruim mesmo é enfrentar as primeiras vezes da vida. Bom mesmo é lembrar. Melhor ainda é editar.