quinta-feira, 2 de março de 2017

O próximo trem

Acho que ela tinha acabado de descer aos trilhos. A ponto de a situação na estação de Berri-UQAM parecer até normal. A ponto de eu, sem querer, mecanicamente levada pelas mãos da rotina, ter chegado tão perto dela, para esperar o metrô.  Meu sangue parou de circular no momento que a rotina largou minha mão e apontou a mulher que perambulava desajeitamente sobre os trilhos, até dando a impressão de que queria chegar em algum lugar mas não sabia o caminho. Andava com o desespero de quem procura um espaço para pisar entre cadáveres, desconhecendo um ambiente outrora familiar, tropeçando nos próprios pés. Andava como se esse fosse o único caminho que lhe restara.
Madame!!! berraram os funcionários da segurança do metrô que foram chegando, Arrêtez-vous!!! Ne bougez pas!! Ordenavam-lhe que parasse de se movimentar. E eu ainda estava ali, a pouquíssimos metros dela, dois, três?, até que uma das funcionárias como que se lembrando que nós outros existíamos virou-se para nos afastar, Reculez, reculez.
Recuamos, mas ainda podíamos assistir ao macabro espetáculo do desespero que leva uma mulher de meia idade, de sobretudo cor ocre, cabelos crespos presos em um coque alto, agarrada a uma bolsa de mão que talvez ainda contivesse algo de precioso pra ela - uma foto, uma lembrança, um fio de esperança - descer aos trilhos do metrô. Sabendo que, ou pior, esperando que o próximo trem levasse a sua vida. Arrêtez, Madame! eram as palavras mais compreensivas e gentis que os funcionários da segurança, envolvidos em seu próprio desespero, conseguiam dirigir-lhe, aos gritos. Talvez tenham sido treinados a serem rígidos e autoritários com pessoas que tentam se suicidar. Talvez isso funcione. Quem sou eu para saber.
Sob pressão, sentou-se nos trilhos. E chorou. Continuava só, sob o olhar dos funcionários que monitoravam da plataforma. Talvez tenham sido treinados a não se aproximarem de pessoas que tentam se suicidar. Podia ter uma bomba na bolsa, uma arma, não sei. Quem sou eu para saber.
Era negra. Poderia ser imigrante, poderia ser refugiada, canadense de origem não deveria ser. Era negra, tinha os cabelos presos no alto em um coque, um sobretudo, uma bolsa de mão. E chorava sentada nos trilhos do metrô de Montreal, sob o olhar de várias, muitas pessoas que faziam baldeação no horário de pico da estação mais agitada da cidade. Provavelmente já ciente que não seria o próximo trem que iria pôr fim ao seu sofrimento, provavelmente já ciente de que nada iria.
Dois funcionários finalmente desceram, levantaram-na, e levaram-na até a próxima escada de emergência. Desapareceram rapidamente, deixando espaço para os murmúrios entre as pessoas, o disse-me-disse, as especulações, exclamações, queixas, quanto tempo até o próximo trem?
Não muito tempo. Tudo voltou ao normal com uma rapidez impressionante, entramos no trem, e cada um desapareceu também rumo ao seu próprio destino e seu próprio desespero.