quinta-feira, 25 de julho de 2019

Por nenhuma razão que se justifique

-Excusez-moi?

Uma cadeira de rodas, um corpo contorcido, um belo, delicado e jovem rosto, com pequenos óculos redondos e olhos azuis fitando-nos com doçura. Um québécois de souche. Podem me emprestar o celular para eu fazer uma ligação? Nenhum motivo dramático, nenhuma história para nos convencer, apenas um simples e sincero pedido.

Eis o momento, meus caros, em que se perde oportunidade de fazer o bem. O momento em que nosso discurso "desconstruído" das redes sociais se espatifa na desprezível hesitação frente a um pedido inusitado no parque, sob um belo céu azul de verão.

Hesitação, desconfiança, impulso de dizer não por costume, sem motivo minimamente justificável. Me empresta o celular? Não. Por preconceito, individualismo, falta de compaixão, por nenhuma razão, apenas essa monstruosidade construída em nós, dia após dia, a humanidade perdida.

Havia que pôr fim àquele silêncio de segundos que valeram por horas. 
- É que não somos daqui... (verdade) e não temos... huh...
Ele completou minha frase - vocês não têm rede telefônica, entendo - sim, era isso que eu queria dizer, mas não, não era verdade. Era apenas a saída mais fácil, a ânsia de acabar com o desconforto e fazê-lo se afastar levando nossos pecados, amém. Era uma mentira.

Ainda estávamos no mesmo banco, desconhecendo-nos, mudos e paralisados por nossos demônios internos, quando ele voltou sorridente e animado: "Consegui! Estou esperando umas amigas". Aproximou-se vencendo penosamente a pequena elevação até chegar ao nosso lado. Estendeu sem cerimônia a mão retorcida: me chamo M. e vocês? De onde são? Preocupado, perguntou de Bolsonaro, se disse politicamente de centro. Perguntou se jogamos capoeira, sabia dizer Obrigado e Bahia. Perguntou se gostaríamos de compartilhar uma cerveja em lata que tirou da mochila com grande dificuldade. Oferecemos ajuda para abrir a lata, quem sabe assim, a nossa redenção. Não precisa, disse M., com a mesma doçura em seus olhos azuis. Dessa ajuda, ele não precisa.


domingo, 24 de dezembro de 2017

Vida na medida certa

Há os que vêm só pelo calor. Para quem não tem um teto, as poltronas confortáveis em temperatura amena são ideais para um cochilo. Aqui qualquer um pode deixar-se estar e apreciar, da janela, os flocos de neve. Quando o céu abre-se em azul intenso, as temperaturas tornam-se glaciais e a neve cintila e ofusca, antes de derreter-se em lama traiçoeira por todas as calçadas. O inverno é um tempo de poucas opções. Aqui é uma delas.

Há os que chegam com seu material de estudo e espalham-se pelas mesas coletivas. Fogem de lares apinhados de arengas e barulho, ou carregados do silêncio ensurdecedor da solidão. Aqui, há um murmúrio doce e constante, um arrastar de casacos de inverno pendurados no dorso das cadeiras, um vai-vem de folhas de livros. Aqui há vida na medida certa.

Nas manhãs dos dias de semana, os idosos passeiam pelo espaço no seu ritmo, protegidos das perturbações do corre-corre interminável lá de fora, antes que cheguem os adolescentes de capuz ou cílios alongados, a arrastar suas botas molhadas, ávidos pelo acesso à Internet. Nos fins de semana, crianças saltitam com as pilhas de historinhas que vão garantir o seu entretenimento entre quatro paredes e - mal sabem elas - a saúde mental de seus familiares. Aqui acolhe-se a diversidade.

Depois de bater a neve das botas, retomar o fôlego, massagear as extremidades (con)geladas do meu corpo para estimular a circulação do sangue e assoar o nariz que escorre sempre, eu abro a segunda porta e me deixo abraçar pelo calor e cheiro dos livros. Só venho para buscá-los e devolvê-los, mas a vontade é deixar-me ficar sem motivo, contemplando o frio do lado bom da janela, ouvindo o murmúrio da tranquilidade ou o ronco dos sem-teto. Porque aqui, me sinto bem.


 

domingo, 19 de novembro de 2017

O inverno nos despe de muitas vaidades

O inverno nos despe de muitas vaidades. Brincos engancham em cachecóis e machucam quando usamos protetor de orelhas. Anéis incomodam com luvas. Os casacos são grandes e dificilmente valorizam corpos. Gorros de inverno, com seus enormes pompons no topo, são desprovidos de qualquer charme. Botas, para serem eficazes, são volumosas, e devem ser maiores que o nosso número habitual, para serem usadas com meias grossas, tornando-se muitas vezes desproporcionais em relação às pernas finas de tantas moças. Mas não importa, é assim mesmo. O inverno nos despe de muitas vaidades. E há algo de libertador nisso.

A troco de nada

Segura um copo descartável de café. Sua cabeça pende ora para frente, ora para trás. Seu estado deplorável é no entanto incapaz de ocultar a beleza masculina da sua meia idade, uma barba grisalha ainda curta, quase bem cuidada, poder-se-ia dizer. De tênis esburacados, roupa suja, provavelmente entrara no vagão após um domingo sentado em alguma porta de estação de metrô, segurando um copo de papel, apenas. À espera de moedas, a troco de nada. Assim como tantos outros pela cidade, não canta nem toca um instrumento, nada vende, não oferece um serviço, sequer pede. Apenas espera. E agora, ao fim do dia, deixa-se levar ao longo da linha laranja. No sacudir do vagão, abre às vezes os olhos, mirando sem foco o vazio do seu não-futuro.

You need to help me

-Excuse me. You need to help me. 
Ela me abordou na calçada, em um inglês um tanto hesitante. Tinha certa idade, um lenço amarrado na cabeça, um bom celular na mão, óculos escuros. Precisava pegar o ônibus para ir trabalhar, era longe, não dava para ir andando, a filha estava longe também, falou de uma válvula no coração, enfim, tinha esquecido a carteira. Eu podia ter me lembrado de quando duas moças me contaram toda uma história e sumiram com minha câmera fotográfica em Madri, e eu chorei muito, mas em vez disso me lembrei de quando fui comprar ingressos no Teatro Guararapes em Recife e só estava aceitando espécie e eu juntei todo o dinheiro que tinha e faltaram uns centavos, e eu pedi moedas ao próximo da fila. Pedi dado mesmo, na cara de pau, pois não ia pagar uns centavos de volta, e né, que diferença faria... E a pessoa me deu. De cara feia, mas deu.
Enquanto eu tirava minhas moedas da bolsinha para dar à senhora, ela me agradecia e repetia que Deus estava vendo e que ele ia me recompensar, ou algo assim.
Na hora eu quis dizer que não é isso que me motiva a ajudar o próximo, que gostaria de manter as coisas mais no nível humano-humano, da linha do gentileza gera gentileza e vamos fazer um mundo melhor para todos, mas bem... Apenas sorri e disse "no problem", à moda inglesa.

On dit Namastê à son voisin

"That's very good", disse meu professor de ioga, sobre a minha pose do pombo. Depois do mantra Om harmonizar todas as vozes da sala, cumprimentei com Namastê minhas duas vizinhas, sorrimos reciprocamente, e saí na chuva em mais um dia horroroso dessa suposta primavera. Em frente à estação de metrô, uma moça de cabelos azuis, abrindo uma carteira de cigarros, aproximava-se chorando aos soluços do morador de rua que está sempre instalado ali, e que parecia ser seu amigo. No vagão duas crianças asiáticas apontavam e riam de um jovem rapaz que usava batom lilás, vestido preto justo e meias-calça verdes chamativas, e mantinha-se impassível. Ao descer para fazer baldeação, fui abordada por uma moça que tocou meu braço para dizer que "ton manteau est vraiment beau!!" e que ela queria ter um igual, "merci, merci beaucoup", eu respondi, e ela me desejou "bonne soirée". Na minha estação, uma moça que eu nunca tinha visto antes no canto reservado aos músicos tocava um baixo lilás super estiloso, aproximei-me para deixar algumas moedas em sua cestinha, disse "bonsoir", ela respondeu "salut, how are you?", "good, and you?", "good", disse ela em um sorriso agradecido e confiante. Coloquei echarpe, protetor de orelhas, luvas, e saí de novo para andar até em casa na chuva dessa suposta primavera, e coloquei pra tocar a trilha sonora de Glee no meu ipod, porque sim, sou dessas. 

Muito mais do que uma moeda

Vinha ao longo da plataforma cheia, noite avançada da quinta-feira, por vezes tropeçando em seus próprios pés, e suspendendo, a cada dois ou três passos, a cintura da calça jeans frouxa demais. Parecia selecionar aleatoriamente uma pessoa aqui e ali para pedir uma moeda. Ao vê-lo se aproximar, as pessoas baixavam os olhos, mudavam de lugar, fingiam-se distraídas ou ocupadas. 
Mas ela não. Ela não se afastou de sua abordagem próxima demais, encarou-o sem sentir nojo, escutou o que ele tinha a dizer com interesse genuíno. Já ele, desconcertado por ser tratado como ser humano pela moça branca de olhos belamente maquiados, vida ocupada e exercícios físicos regulares, desviou o olhar para o vazio, sentiu vergonha dos seus cabelos em total desalinho, sua barba excessivamente longa, suas roupas sujas, sua pele negra quase cinza de tão empoeirada. Sem pressa, ela guardou o celular no bolso, e abaixou-se para procurar algo na mochila jogada ao chão, uma mania dos canadenses em Montreal. Levantou-se com uma moeda de dois dólares entre o polegar e o indicador, que exibiu como um troféu, na altura dos olhos de ambos. Com um meio sorriso natural em seu rosto ainda jovem, mas já marcado pelo tempo, dada sua pele pálida, ela falou algo como: está vendo essa moeda? Eu vou lhe dar essa moeda. Mas pense bem no que você vai fazer com ela. Ou talvez ela tenha dito, está vendo essa moeda? Pegue essa moeda e vá tomar uma cerveja porque eu não tive happy hour hoje e estava até agora em reunião com o chefe, e a vida deveria ser mais do que isso, você não acha? O senhor que estava próximo aproveitou para também pôr uma moeda na mão do pedinte. Ele seguiu, com sua apatia estampada no rosto, em minha direção. Covardemente, baixei os olhos e ele passou sem me notar. A moça entrou no mesmo vagão que eu e em pensamento eu lhe disse, obrigada por existir.