sexta-feira, 18 de setembro de 2009

"Metade de mim é a lembrança do que fui. A outra metade, eu não sei."

Eles aprendem cedo. Saem de casa aos 17, 18. Mudam de cidade, ganham o mundo. Aprendem a cozinhar, pagar contas, fazer limpeza, cuidar de si mesmo. E não há volta aos cuidados de mummy & daddy. Cada um se vira e dá conta de si. Homens e mulheres, meninos e meninas, voltam sós da balada nos ônibus noturnos, não dão "um toque no celular" do amigo para avisar que chegaram bem. Ninguém leva ninguém ao ponto do ônibus, as meninas não vão em dupla ao banheiro e os namorados não andam de mãos dadas. Ninguém manda um beijo no final das ligações. Ninguém passa a mão na cabeça de seu ninguém. E assim se aprende a se virar sozinho - mesmo que haja parceiros, amigos, família por perto, as pessoas sabem fazer as coisas so-zi-nhas. No problem, mate.

Eu aprendi. E já não sofro mais. E já não sei mais se isso é ruim ou bom. O que no começo me soava como uma frieza inaceitável, um "tou nem aí" cruel, foi aos poucos alimentando em mim uma crescente e sedutora individualidade. E, como que por vingança, eu levanto a cabeça com um certo orgulho nas ruas, como quem diz, pois bem, eu também não estou nem aí pra vocês. Agora eu também sei me virar.

Por outro lado, é verdade que o bicho-do-mato que eu já era anda sendo tão cevado que está praticamente um monstrinho. Um monstrinho que não entende por quê pelo amor do guarda eu tenho que contar minha vida toda à dona do restaurante somente porque eu sou brasileira e ela também - quando eu gostaria apenas de saborear a minha feijoada. Vem cá, te conheço? Um monstrinho que fica estupefato quando escuto de uma senhora brasileira que acabo de conhecer, em um ambiente profissional, detalhes íntimos sobre a vida pessoal de terceiros. Um monstrinho que me implora para que eu não vá à cabelereira que me chama de "gatchinha" e que vai se espantar e me cobrar explicações para o fato de eu ainda não ter arrumado um namorado.

E tais incursões por ilhotas culturais brasileiras em Londres vêm fazendo crescer em mim um outro tipo de solidão. Como se agora meu olhar fosse estrangeiro em quaisquer terras e em parte alguma eu seja entendida. Porque ainda que agora eu necessite de doses de solidão quase diárias, para ouvir minha música, para observar o mundo à minha volta, para criar e recriar meus sonhos, ou simplesmente ficar em silêncio, sem ter que pensar em alguma coisa pra dizer; mesmo que agora eu tolere ainda menos o constante controle sobre a vida do outro tão comum entre casais brasileiros, mesmo que eu preze cada vez mais o meu direito de ser eu e de ser livre, e de poder ir a um casamento sem pintar as unhas sem que isso cause um escândalo entre todas as mulheres da festa (sim, porque os homens - viva a simplicidade masculina - não iriam nem perceber), ainda assim, não sou e nunca serei como os ingleses.

E aí eu olho, ouço, leio, escuto, e me pergunto: onde é o lugar onde não se fala tanto da vida alheia, mas mesmo assim manda-se um beijo antes de desligar? Onde é que meu namorado vai segurar a minha mão com carinho, e eu nem precise fazer uma escova para acompanhá-lo à sua formatura? Onde vai ser aquela festa a que eu possa ir desacompanhada mesmo que tenha um parceiro fixo e ninguém vai logo achar que tem alguma coisa errada no relacionamento, e no fim da noite alguém vai se oferecer para me acompanhar até o carro?

Quero um picolé de coco na praia com o sol a pino e os amigos, a família, o cachorro e o papagaio em volta, e um chá inglês e uma banheira quente, em um fim de tarde frio, ouvindo as acústicas dos Beatles, melancolicamente sozinha. Pois "tenho fases, como a lua. Fases de andar escondida. Fases de vir para a rua. Perdição da minha vida! Perdição da vida minha! Tenho fases de ser tua. Tenho outras de ser sozinha." (Cecília Meireles)

4 comentários:

Unknown disse...

novamente, muito bom.

Analu. disse...

Essa questão cultural individualista talvez serviria para me deixar independente... E desapegada das pessoas. Sou do tipo que me apego e dependo fortemente de um monte de gente. Esta seria uma boa experiência pra mim, para poder mudar, e confiar mais em mim mesma e na minha capacidade de poder me virar sozinha. Aproveite que você tem essa chance.

Rosa Maria disse...

Oi, Monstrinho! Será preciso fundar uma comunidade: eu mando beijo e não quero saber da vida íntima dos outros. Cidadão do mundo, estrangeiro em toda parte? London, we have a problem.

Mayra disse...

em angola eu que era a londrina. sempre fui monstrinho - uma constatação, orgulho nunca.
a gente realmente absorve as coisas com as quais se identifica, e daí, nega, vem outra constatação: não havemos de perder essa sensação de "despertencimento" nunca mais. não nós, as gentes cabreiras.