O trabalho liberta. Até no lema de Auschwitz, os nazistas conseguiram ser sádicos. Todo dia, os prisioneiros cruzavam o portão com esta inscrição rumo a um dia de trabalho escravo que provavelmente iria matá-los, mas por certo nunca os libertaria. Voltavam à boca da noite, amparando-se uns aos outros, obedecendo ao ritmo do som cruel de uma orquestra para facilitar a contagem.
Estes coitados tinham tido a sorte de, ao descerem do trem na plataforma dentro do campo de concentração, serem considerados aptos para o trabalho e, portanto, terem suas vidas poupadas. Poupadas de que? Pergunto-me se estes eram realmente os privilegiados, ou se na verdade eram os que, por nada, foram condenados ao inferno na terra.
Tudo se aproveitava. Os cabelos eram usados para fabricar tecidos, os pertences eram revendidos ou reciclados e até as cinzas viravam adubo. Assim como animais, dos quais comemos a carne, usamos o couro e, dos ossos, fazemos uma sopa.
Visitar Auschwitz foi angustiante, entrar nas celas me deixou sufocada; eu queria fugir, sumir, esquecer, negar. É difícil acreditar em tanta crueldade, enfrentar as montanhas de sapatos, de óculos emaranhados e de roupinhas de crianças. Os sacos de cabelos. Os olhares vazios nos rostos magros das fotografias me apavoravam, eu não conseguia encará-los, eles me cercavam pelos dois lados daquele corredor aterrorizante. Apressei o passo, olhar fixo no chão, que me deixem sair, eu não quero ver, não quero saber, já basta.
A excursão ficou pra trás e eu me vi então sozinha, emparedada entre os muros de Auschwitz, tonta de angústia. Antes estivesse eu, assim como outros membros do grupo, juntando os amigos para tirar uma foto, sorrindo, em frente à câmara de gás. Digam "xis". A vida é bela.
Não longe dali, no bairro judeu da cidade de Cracóvia, uma pichação no muro de uma sinagoga escancara uma outra ordem mundial: uma estrela de Davi, um sinal de igualdade, uma suástica. E algumas palavras de apoio à Palestina. Estampados na primeira página de um tabloide londrino neste início de ano, três meninos palestinos mortos, deitados um ao lado do outro, parecem apenas adormecidos em um sono angelical.
Os anos passam, as coisas mudam, e os seres humanos seguem matando seus irmãos. Cada grupo étnico ou religioso acha-se no direito de, agarra-se aos seus argumentos e mata em nome de Deus. E pra que? Absurdos como Auschwitz não se justificam em nome de absolutamente nada neste ou em qualquer outro mundo. A paz parece a mais longínqua das utopias. Imagina? "All the people. Living life. In peace"? Nem eu. Que Deus nos ilumine.
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4 comentários:
Uma colega de trabalho, judia, fez essa viagem ano passado. Voltou atônita, e fez um livro lindo com as fotos, que virou trabalho de graduação. Ela me disse que não entendia como tinha gente que estava só "curtindo a viagem". Ela mesma, como seus 20 e poucos anos, começou com aquela sensação de alheamento, mas terminou com náusea.
Essas coisas não tem explicação. O desejo tão humano de se sobrepor aos outros não tem explicação.
Deus os perdoe.
Minha amiga, eu sou seu fã. Não sou muito de ler Blogs, na verdade, não sou muito de ler mesmo, leio pelas obrigações que o trabalho me impõe. Porém, todas as vezes que tu mandas um link para um dos teus posts, eu acabo lendo o post e todos os demais que ainda não li... Sempre reflexões e textos interessantes e sempre muito bem escritos! Continue enviando os links, senão vais me privar de continuar lendo seus textos, faça essa boa ação pelo seu amigo :)
Sim, a respeito desse post especificamente, senti a mesma agonia/angústia quando em Amsterdam visitei a casa que Anne Frank morou e escreveu seu diário na época da perseguição aos judeus. Lá funciona um museu atualmente. Sai chocado, ñ dá para imaginar como essas pessoas sofreram.
Beijo
poxa, fiquei emocionada! que bom :D
eu também visitei a casa de Anne Frank, e depois de ter lido seu diário...
enfim, volte sempre!!
O tempo passa, e cada vez mais me convenço da pertinência da sacação de Freud, ao propor a equação humana em termos de Eros (o princípio da vida, da construção amorosa) e Thanatos (o princípio da morte, da destruição, do aniquilamento). Os princípios morais e éticos se sucedem ao longo da história, tentando dar conta dessa dupla natureza em termos do Bem e do Mal, da Virtude e do Pecado. Sabe o que mais me choca? O que mais me choca é que os nazistas foram HUMANOS, os nazistas não foram marcianos; não são alter-criaturas, das quais possamos nos demarcar higienicamente via execração. O que aconteceu na Alemanha nazista voltou a ocorrer, em escala aritmeticamente menor, nos antigos países do que foi a Iugoslávia, na guerra genocida entre sérvios e croatas. E pode voltar a acontecer, que ninguém se iluda. Os sinos dobram por nós todos, companheiros. Ser gente é continuadamente lutar para manter a equação interna em desigualdade para o lado construtivo, a nossa e a dos demais que nos cercam. Muitas seitas avisam: é preciso vigiar e orar, diuturnamente. Temos todos a alma manchada de nascença pela possibilidade do mal, somos livres para jogar álcool no primeiro mendigo que surgir. Pelo bem de cada um e da espécie, é preciso lutar sem parar pelo controle pessoal e social dos demônios. O nazismo foi somente uma das múltiplas caras da miséria humana que nos constitui inexoravelmente. Sim, que Deus nos ilumine.
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