Em uma das crônicas de seu mais recente livro, "Doidas e Santas", Martha Medeiros pinta a pessoa honesta como um caso em extinção, um chato careta que não consegue integrar-se sequer às pequenas maracutaias nossas de cada dia.
Sem falso pudor, eu me considero uma pessoa muito honesta (ainda que perdendo para a minha mãe) e talvez por isso venha me chocando recentemente com (aparentemente) inocentes episódios da vida pública.
Esperávamos as pizzas. Na mesa, uma australiana, um inglês, e três inglesas, fim dos 20, início dos 30. O rapaz contava que tinha comprado um par de tênis, mas achava que tinham-lhe recomendado e vendido o número errado, e gostaria de trocá-lo, ainda mais agora que a loja estava com uma super promoção "compre 1, leve 2". Porém, como tirar proveito da promoção se ele JÁ havia comprado o tênis? Morrendo de fome como eu estava, não me sobravam muitos neurônios para prestar atenção na conversa, mas de repente eu me dei conta que toda a mesa estava mobilizada para encontrar um jeitinho para o problema: "diga que está fazendo calos" (!), "finja que ainda não usou" (!!), "por que você não faz um rasgão ou algum estrago e diz que veio assim?" (!!!), etc. etc. O objetivo era pôr a culpa na empresa e, lógico, se dar bem. Que bonito ver amigos se ajudando assim. Eu? Me abstive. Preciso ser aceita nos grupos sociais. Recolhi-me à minha caretice apreciando o divino queijo de cabra da minha pizza.
Dias depois, a mesma australiana reserva uma mesa para um tradicional chá com biscoitos em um hotel chique de Londres. E, assim, sem razão aparente, ou quem sabe para cavar um desconto ou qualquer coisa do gênero, inventa para o funcionário que comemorávamos o aniversário do mesmo rapaz inglês do tênis.
No meio do lanche, eis que o pianista dedilha um happy birthday to you e dois garçons aproximam-se com um prato decorado comemorativo. Todo o salão bate palmas em festa, e o rapaz (que convenhamos, não é um mau garoto) enrusbece ao agradecer com um sorriso sem-jeito, enquanto o restante da mesa (ingleses e australianos) ri, vibra e solta piadinhas. Eu? Decidi que mais valia a pena me inebriar do cheiro do meu chá de canela.
E assim, de mentirinha em mentirinha, vão as pessoas tentando tirar vantagem em tudo. Já parece até algo natural, faz parte do jogo, é assim que se ganha, ora não seja um pateta! Depois, moralistas, condenam os outros, indignam-se com falcatruas reveladas, gritam aos quatro ventos que político não presta e revoltam-se ao serem lesadas. Porque, claro, devem se achar, no mínimo, um exemplo de honestidade.
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3 comentários:
Este é um assunto bastante recorrente em meus momentos de reflexão sobre as coisas que me incomodam nos maus hábitos das pessoas. Em geral costumamos atribuir esse comportamento ao jeitinho brasileiro. Mas, pelo visto, esse jeitinho é muito mais internacional do que a gente pensa. No caminho de volta pra casa eu e Bárbara viemos conversando com um Italiano no trem que disse que o que mais incomodava ele na Itália era o jeitinho que os italianos tinham pra resolver as coisas. O jeito que sempre passa por um caminho alternativo que não o ético e socialmente correto. Nesse momento eu fiquei pensando. "Acho que conheço um lugar onde as pessoas também se comportam assim". É isso aí Letícia! Será que estamos diante da globalização do jeitinho brasileiro?
O resto do mundo eu não sei, mas nós, brasileiros honestos, temos é que nos multiplicar e acabar com essa fama de jeitinho. :) Se nós mesmos não nos valorizarmos, quem o fará? Eu sou brasileira e não desisto nunca :P
E ninguém fica indignado com os "jeitinhos" por causa da velha história: "ah, eu que sou lesado, olha o preço disso, não tem problema nenhum pra o fabricante/prestador de serviço perder essa, eles sempre ganham com tudo, tá todo mundo rico, mesmo"...
É. Vamos aproveitar e terminar de desmatar a Amazônia, nenhum de nós estará aqui pra viver sob o aquecimento global, mesmo...
Moral da história: só dói quando o calo é seu.
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