terça-feira, 20 de setembro de 2011

Coletivos, automóveis, motos e metrôs

Bairro de Afogados. Saio da escola no meio da manhã. O metrô, vazio e gelado pelo ar condicionado, rapidamente alcança a Estação Recife, onde me espera uma longa fila para fazer a integração. O ônibus chega, e a fila vai entrando, entrando, entrando, como uma linha de formiguinhas conformadas e disciplinadas, até que me vejo espremida, ponderando entre manter meu braço encostado no peito da vizinha, ou fazer mais esforço segurando-me no suporte do teto com as duas mãos. "Fia, me dá a bolsa", diz a jovem sentada à minha frente. Sorrio agradecida e empilho minha mochila e minha bolsa de mão no colo da moça. "Motorista, meu pé tá preso na porta!" grita uma voz masculina ao fundo. Como telefone sem fio, o recado vai passando até conseguir chegar aos ouvidos do motorista. "Abre a porta, motorista, o pé do rapaz tá preso!" "A porta de trás, motorista!!". "Aeeee, valeu!!!". E lá fomos nós, no "Circular (Prefeitura)". Não parecia haver meio de ninguém feito de carne e osso mover-se para qualquer porta daquele ônibus. "Só quero ver como eu vou descer", pensei. E lá fomos nós.

Passamos em frente às chamadas torres gêmeas do Recife, dois espigões de luxo que uma construtora resolveu erguer ao lado dos velhos armazéns cujas calçadas já foram moradas fixas de tantos sem-teto, que vez por outra ainda se deixam ficar por lá. Nós, de dentro do ônibus, podemos ver na garagem do Edifício Pier Duarte Coelho um carro Land Rover. Interessante esta nossa sociedade, pensei. Certamente não é apenas por questões de mérito que o dono desse Land Rover tem um Land Rover e mora no Pier Duarte Coelho enquanto tantas pessoas estão apinhadas aqui dentro do Circular Prefeitura. O tal mérito, defendido a unhas e dentes por aqueles que não suportam os ideais comunistas, o tal mérito que motiva o ser humano. Não tenho nada contra, desde que todos possam partir das mesmas oportunidades. Não é o caso. Quem nasce em uma favela do Recife, ainda que se mate de trabalhar, dificilmente conseguirá comprar um Land Rover e morar no Pier Duarte Coelho.

A arrancada do ônibus me puxa de volta à realidade. As torres gêmeas e seus carros de luxo ficam para trás, uma curva a todos sacode, contraio as mãos para segurar forte e não cair por cima dos vizinhos, decerto faço uma pequena careta de esforço, e surgem as águas do Capibaribe. Que hoje, por bênção, estão de um hipnotizante e ensolarado verde-cintilante. Estamos saindo da estação das chuvas e o dia é belo. Pescadores sentados na calçada ajeitam suas redes enquanto seus barquitos boiam ao sabor do vento. Vejo uma gaivota em voo rasante, com um peixe no bico. "Quem não vai descer, dá um espacinho, por favor!" pede uma voz que se eleva. Afasto-me para um espaço que não existe. Não há melhor lugar para se admirar as águas do Recife que do alto dos ônibus. Sempre há que se achar uma réstia de poesia no mundo para que não se perca a esperança.Vai descer, motorista. Um bom dia a todos.


5 comentários:

João Gabriel disse...

Você viu uma Garça, Taci. Não existem Gaivotas em Recife.

Gabi Santos disse...

Se tem uma imagem de final de tarde que eu gosto aqui no Recife Antigo é essa, as pontes do Capibaribe. O Circular Prefeitura lotado já não me agrada muito.
Andar em busão lotado rende muitas histórias. Recomendo o Barro/Macaxeira (Várzea)

Cadê o botão "curtir" o post? :)

Paulo Melo disse...

o interessante eh que, exceto em casos de ilegalidade e corrupcao, etc, o dono do land rover fez por onde ter o que tem. o que nao justifica ter tanta diferenca social, claro.

só fazendo o contraponto. aqui em sp, qd pego um onibus (geralmente menos cheio que ai) fico feliz qd olho para o lado e vejo um cara num land rover, ou oq for. o busao vai muito mais rapido que o carango dele :D

Taciana disse...

O dono do Land Rover não é o "malvado" da história. Ter dinheiro não é crime. Mas em alguns casos não precisa "fazer por onde", basta nascer numa família rica. Assim como em muitos casos basta nascer numa família pobre para estar privado do acesso a oportunidades de crescer na vida. Enquanto as oportunidades não forem mais justas, tais disparidades permanecerão.

Rosa Maria disse...

Nada a acrescentar, Taci, voce eh minha alma gemea!