O segurança puxou-o pelo braço, forçando-o do parapeito para o chão, e enxotou-o com delicadeza suficiente para não aumentar o constrangimento da família de posses que paga seus impostos e tem o direito de aproveitar o recém-inaugurado polo gastronômico do centro histórico do Recife. O direito de saborear o seu temaki, que aquela criança, puxada para baixo, como em tudo na vida, provavelmente não sabe o que é e nunca haverá de saber. Sim, aquele casal, em suas roupas de ciclismo, tem o direito de preservar a sua filhota, de idade semelhante àquele menino sem camisa, do olhar provocador - ameaçador poder-se-ia dizer - que ele impunha sobre os três, exibindo seu torso nu para contrastar com as mangas longas com proteção contra raios solares. Balançando com desleixo seus pés descalços, que nunca irão calçar o tênis da menina, trazido de Miami na última viagem do casal. Não é justo que a pequena seja obrigada a encarar a miséria estampada na cara do menino - mais que isso, aquele olhar agressivo, mau, que certamente poderá traumatizá-la, vai que ela tira os olhos do seu celular touchscreen, e vê... Acenam para o segurança, a criança incomoda, não, não está fazendo nada, mas está sentada ali, incomoda a menina que precisa escolher algo do cardápio para comer, mas não quer, está sem fome, está estafada desse sol do passeio dominical, está entediada com esse celular, já não basta toda essa irritação? Além desse frango mal passado, esse menino ainda inventa de vir sentar-se no batente ao lado dos pés de nossa mesa, com essa insolência estampada na cara, ali, tão perto de nossa filha, que não precisa passar por isso, sinceramente, não precisa.
Para isso está ali o segurança. A área é pública, a cidade revitalizada, a cidade de todos, de todos que têm dinheiro para a proteção UV, para o capacete para ciclismo, para o tênis e o temaki. Para todos que lotam os restaurantes, reclamam do serviço, postam selfies no Facebook, com cuidado para que ali, em segundo plano na foto - como em tudo na vida - não apareça aquele menino, insolente, agressivo, que vem sentar-se no batente do restaurante, para que? Por pura provocação, para estragar o almoço do domingo, para que precisem prestar atenção às bolsas, ao dinheiro, ao cartão. Não se pode aproveitar a cidade do Recife em paz, esse país não tem jeito mesmo.
O segurança puxa o menino para baixo, tenta ser discreto, tenta ser natural, empurra a criança para que desapareça dali, ali não é lugar para uma criança descalça, sem camisa, que ameaça em seu silêncio, que incomoda com seu olhar. Nada fez, sentou-se apenas, sentou-se no chão, claro, porque seus pais, que surpresa, não podem pagar uma refeição naquele restaurante. No mesmo restaurante em que a menina se aborrece com a insistência dos pais para que coma alguma coisa, a mesma menina que se aborrece com o jogo do celular, que já não a entretém mais, a vida é uma chatice.
Sim, ele o faz por provocação, por insolência, por raiva, sim. Ele sabe que vai incomodar, e o que mais resta-lhe a fazer? Ele sabe que não pode estar ali, por mais que as propagandas digam que a cidade é de todos, por mais que não haja um portão, ou uma placa, proibido aos pobres, por mais que não se cobre ingressos, ele não pode estar ali. Mas ele vai, só para provocar, para ver como é passear com a família, como é ter uma família para passear. Para incomodar mesmo, ele vai, vai para ver as pessoas comendo nos restaurantes, vai para dizer que ele existe, e que ele sente raiva. E o que mais ele poderia sentir? Ele se senta aos pés da mesa, no parapeito olhando o mar, ele sabe que será expulso, como em tudo na vida, sem explicação, no fundo, ele sabe que não pode estar ali. E ele sabe que não há explicação.
Mas quem sabe, né. Se ele for um bom menino, estudioso, esforçado, se ele ignorar o fato de que seu pai vende drogas, se ele fingir que não sente falta de um carinho materno, se ele não se incomodar de estudar com o barulho dos irmãos apinhados no mesmo cômodo e os berros dos pais que brigam, se ele decidir frequentar a biblioteca pública e ler muitos livros por iniciativa própria, se ele compreender que é só estudar que tudo se resolve, né, quem sabe assim, ele adquira o dinheiro - ops, o direito - de frequentar as áreas nobres - quer dizer - públicas da cidade de todos.
domingo, 23 de novembro de 2014
segunda-feira, 27 de janeiro de 2014
Yesterday
"Acho que é algo sobre o passado. Algo que acabou..."
Algo que acabou. Foi assim, olho no olho, "vai dar tudo certo", seus olhos cor de castanha, nenhum sinal de lágrimas, nenhum sinal de nuvens, foi assim. Ou foi em um abraço, corpos tão colados, que não passaria um sopro de brisa entre eles, na urgência do momento, no desespero da despedida, foi assim, "vai dar tudo certo", no ouvido, seus cabelos fazendo cócegas no meu rosto, mas cócegas não haveria que pudessem interromper aquele abraço. Ou foi um tête-à-tête, cena de filme, olhos semicerrados, respirações se confundindo, seus lábios roçando os meus em um sussurro, "vai dar tudo certo". Seus lábios roçando os meus. Em um sussurro. Ela já sabia. A mensagem estava escrita em sua mente, mas em vez de dizer acabou, ela disse vai dar tudo certo. Ela disse assim, lábios roçando, cabelos, olhos de castanha, corpos colados, sem sombra de nuvens, tudo junto, ela disse assim. A mensagem chegou no dia seguinte. Até hoje, não sei o motivo.
Não houve motivo. Não me julgue, e nem me culpe. Mas acima de tudo, não me use. Se você fechou as portas do seu coração, não fui eu, foi você. Se você não quis mais sofrer, não quis mais amar, não quis mais chorar, se você jura que nunca mais vai ouvir que vai dar tudo certo, nunca mais vai receber uma mensagem que põe tudo ao chão, que põe tudo em chamas, joga tudo ao alto, nunca mais, não me culpe, não me use. Eu não sou, nem aceito ser, a sua desculpa para não viver. Você não sabe em que frangalhos estava o meu coração quando meus lábios roçaram os seus em um sussurro, quando seu perfume ficou nos meus cabelos e não saía mais, quando passou uma brisa entre nossos corpos, acabou, eu pensei, vai dar tudo certo, eu falei. Você não tem como saber. Com motivo, sem motivo, pouco importa, não é desculpa, não é razão. Isso, é vida. Pra mim, pra você, com motivo ou sem motivo. A despedida, as cócegas, as nuvens, a respiração. A falta de fôlego, o desespero. As nuvens, e o perfume. Não fui eu. Não tenho culpa, nem sou desculpa.
Algo que acabou. Não foi enterrado, queimado, não foi pisado, sobretudo não foi esquecido, foi guardado. Guardado quase com carinho, em uma caixinha de músicas, ou uma caixinha de surpresas, ou uma caixinha com laço de fita azul. Uma fita azul, com a nostalgia dos amores terminados, com a magia dos amores insatisfeitos, e com a insatisfação dos amores negados. "Vai dar tudo certo", se tiver que vir, vai doer menos. Vai dar certo, ou não vai dar, ou vai dar por um tempo, mas vai doer menos. Porque vai estar embrulhado, em uma caixinha, com um laço de fita azul. Porque azul é a cor mais bonita e mais triste que há.
Algo que acabou. Foi assim, olho no olho, "vai dar tudo certo", seus olhos cor de castanha, nenhum sinal de lágrimas, nenhum sinal de nuvens, foi assim. Ou foi em um abraço, corpos tão colados, que não passaria um sopro de brisa entre eles, na urgência do momento, no desespero da despedida, foi assim, "vai dar tudo certo", no ouvido, seus cabelos fazendo cócegas no meu rosto, mas cócegas não haveria que pudessem interromper aquele abraço. Ou foi um tête-à-tête, cena de filme, olhos semicerrados, respirações se confundindo, seus lábios roçando os meus em um sussurro, "vai dar tudo certo". Seus lábios roçando os meus. Em um sussurro. Ela já sabia. A mensagem estava escrita em sua mente, mas em vez de dizer acabou, ela disse vai dar tudo certo. Ela disse assim, lábios roçando, cabelos, olhos de castanha, corpos colados, sem sombra de nuvens, tudo junto, ela disse assim. A mensagem chegou no dia seguinte. Até hoje, não sei o motivo.
Não houve motivo. Não me julgue, e nem me culpe. Mas acima de tudo, não me use. Se você fechou as portas do seu coração, não fui eu, foi você. Se você não quis mais sofrer, não quis mais amar, não quis mais chorar, se você jura que nunca mais vai ouvir que vai dar tudo certo, nunca mais vai receber uma mensagem que põe tudo ao chão, que põe tudo em chamas, joga tudo ao alto, nunca mais, não me culpe, não me use. Eu não sou, nem aceito ser, a sua desculpa para não viver. Você não sabe em que frangalhos estava o meu coração quando meus lábios roçaram os seus em um sussurro, quando seu perfume ficou nos meus cabelos e não saía mais, quando passou uma brisa entre nossos corpos, acabou, eu pensei, vai dar tudo certo, eu falei. Você não tem como saber. Com motivo, sem motivo, pouco importa, não é desculpa, não é razão. Isso, é vida. Pra mim, pra você, com motivo ou sem motivo. A despedida, as cócegas, as nuvens, a respiração. A falta de fôlego, o desespero. As nuvens, e o perfume. Não fui eu. Não tenho culpa, nem sou desculpa.
Algo que acabou. Não foi enterrado, queimado, não foi pisado, sobretudo não foi esquecido, foi guardado. Guardado quase com carinho, em uma caixinha de músicas, ou uma caixinha de surpresas, ou uma caixinha com laço de fita azul. Uma fita azul, com a nostalgia dos amores terminados, com a magia dos amores insatisfeitos, e com a insatisfação dos amores negados. "Vai dar tudo certo", se tiver que vir, vai doer menos. Vai dar certo, ou não vai dar, ou vai dar por um tempo, mas vai doer menos. Porque vai estar embrulhado, em uma caixinha, com um laço de fita azul. Porque azul é a cor mais bonita e mais triste que há.
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